domingo, 23 de fevereiro de 2020

Meia-entrada procede ou não?

Em postagens anteriores, falei que certos assuntos são amplamente debatidos por um tempo, cai no esquecimento e voltamos a discuti-los novamente. Por consequência, até essa minha afirmação está entrando nesse processo. A questão da meia-entrada em cinemas é um desses assuntos, mas é a primeira vez que falo sobre isso. Muitos ou todos os economistas afirmam que a meia-entrada não paga pelos estudantes é repassada para os demais, aumentando o preço geral. Tenho minhas dúvidas quanto a isso e sobre a necessidade desse repasse.


Parece uma coisa simples, mas não é. Como foi feito essa redução e esse repasse? Uma empresa de cinema cobrava, digamos, R$ 30,00 o ingresso para todos. Aí, veio uma lei que obriga a meia-entrada para estudantes, que pagarão R$ 15,00. Se houver o repasse dos outros R$ 15,00 por estudante aos demais, o valor do ingresso inteiro será superior a R$ 30,00, pois são os R$ 30,00 anteriores mais os R$ 15,00 não pagos por estudante repassados aos demais. O novo valor depende da proporção de estudantes/não-estudantes. O dono do cinema fará o que poderá fazer: reduzirá em 1/3 para os estudantes e aumentará 1/3 para os demais. Agora, a meia-entrada custa R$ 20,00, e a entrada inteira, R$ 40,00. Meia-entrada, mas com um valor maior.



Proporção de estudantes


Esse é um fator importante para calcular a arrecadação do cinema e o repasse dos custos da meia-entrada. O problema é que essa proporção é variável, talvez nem tão variável para cada tipo de filme (sim, tem mais isso), mas sabemos que não é algo fixo. O custo do terço aos demais procede se a proporção de estudantes for de 50% (e 50% dos demais). Se a proporção for menor, o terço repassado custará menos aos demais; se for maior, custará mais. Se tivermos 20% de estudantes, o terço descontado para a meia-entrada custará menos de 10% aos demais (1/3 do valor não arrecadado dividido pelo número dos não-beneficiados). Usando os valores supracitados, se a meia-entrada for para R$ 15,00, os demais deverão pagar R$ 18,75. Isso seria um repasse normal, onde o dono do cinema não perderia nada, mas para que os R$ 15,00 sejam de fato uma meia-entrada, é necessário que os demais paguem R$ 30,00. Não foi só um repasse, mas um ágio.



Elasticidade preço da demanda.


Existe na economia o conceito das elasticidades. No caso da elasticidade preço da demanda, ela mede a variação da venda de um produto quando varia seu preço, no sentido contrário, claro. Uma elasticidade -1, por exemplo, significa que a venda teve a mesma variação que o preço. Se o preço aumentou 50%, então a venda reduziu 50%. Numa elasticidade de -0,5, então a venda reduziu 25% quando o preço aumentou 50%.


                                                                       . . .



As únicas certezas que temos é a capacidade das salas - outro fator importante para o dono do cinema calcular sua  arrecadação esperada -, e a mudança da quantidade do público quando o preço altera.


Um repasse dos custos da meia-entrada faz sentido se a elasticidade preço da demanda for inferior a -2, ou seja, se uma redução de 50% resultar em um aumento de público inferior a 100%. Essa elasticidade é condição necessária para o dono do cinema não perder arrecadação. Se for o caso, a meia-entrada pode ser dada a todos, não apenas aos estudantes, mas aí deve haver outra condição: o público com o valor normal não pode ultrapassar a metade da capacidade da sala, pois se dobrar o público, não haverá espaço para todos. Lógico. A capacidade do cinema é o limitador.


É muito provável que sua elasticidade seja inferior a -2, mas então, o que justificaria o repasse. Então, qual é a elasticidade correta? Qual é a proporção dos beneficiários pela meia-entrada? Nada disso sabemos, até porque a elasticidade não é um valor exato e a proporção de beneficiados é variável. A meia-entrada não será em relação ao preço antigo, mas a um novo preço.


Vamos aos desenhos:


Temos um cinema com capacidade para mil pessoas.


Situação 1:

Número de estudantes: 500
Restante do público: 500
Ingresso normal: 30
Arrecadação: 30.000

Com a meia-entrada sem repasse

Número de estudantes: 800
Restante do público: 200
Ingresso normal: 30
Meia entrada: 15
Arrecadação: 18.000


Houve uma redução (perda) da arrecadação, e o dono do cinema não deixará por isso mesmo. Se repassar os R$ 15 que perdeu aos demais, cada um pagará R$ 15,00 a mais.



Com a meia-entrada repassada

Número de estudantes: 500
Restante do público: 500
Ingresso normal: 45
Meia entrada: 15
Arrecadação: 30.000


Isso fere o próprio conceito de meia-entrada, pois aí temos um terça-entrada.


Notem que não houve variação do público. Se o preço da entrada diminui para estudantes, é de se esperar que aumente a quantidade de estudantes e diminuir o restante do público. Supondo que a elasticidade preço da demanda seja -1,2; então teremos outra situação.



Situação 2:

Número de estudantes: 500 
Restante do público: 500 
Ingresso normal: 30
Arrecadação: 30.000

Com a meia-entrada

Número de estudantes: 800
Restante do público: 200
Ingresso normal: 30
Meia entrada: 15
Arrecadação: 18.500


Houve uma redução (perda) da arrecadação, e o dono do cinema não deixará por isso mesmo. Para não ter prejuízo, terá que repassar R$ 60,00 aos demais.



Com a meia-entrada repassada

Número de estudantes: 800
Restante do público: 200
Ingresso normal: 90
Meia entrada: 15
Arrecadação: 30.000


Isso fere mais ainda o próprio conceito de meia-entrada, pois aí temos um sexta-entrada.


Notem a dificuldade dessa questão. Isso que usei metade-metade do público. E se acabarmos com a meia-entrada, como ficará? Reduzirá a quantidade de estudantes e aumentará a quantidade dos demais, o que dará um "equilíbrio", mas não sabemos se o dono do cinema arrecadará mais ou menos que antes, dificilmente o mesmo valor. Não é algo tão simples quanto parece.


Como todos, defendi o fim da meia-entrada sem pestanejar, mas agora estou na dúvida se vale a pena ou não. Alguém já fez estudos sobre isso?




segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Nazismo

Na semana retrasada, o então Secretário da Cultura, Roberto Alvin, fez uma declaração onde parafraseia o Ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. Desde então, recomeçou uma discussão sobre nazismo e puxaram o comunismo para a briga. "Nazismo x Comunismo", "Nazismo é de direita ou esquerda?" e "Aquecimento Global/Mudanças Climáticas" são assuntos que aparecem e reaparecem de tempos em tempos, e nada de novo para acrescentar a eles, sempre as mesmas coisas. Aqui, pelo menos, abordo perspectivas que passam despercebidas pelos demais.



A frase parafraseada por Goebbels, 



“A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”.


A frase original é:



"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.



Associe isso a um fundo musical composto por Richard Wagner, o compositor preferido de Hitler, e pronto, temos a mais perfeita manifestação do nazismo na mídia e na internet. Sem querer defender o então secretário - critiquei-o por sua política de "produção de cultura conservadora" ou coisa do tipo, como se coubesse ao Estado produzir cultura - mas nazismo não é isso, nazismo é outra coisa, muito pior.



A declaração de Alvim, se desconhecêssemos o autor e sem a tal música de fundo, poderia ser de autoria de qualquer responsável pela cultura de um regime totalitário. Acredito que algum secretário de Stalin tenha dito algo parecido, embora não tenha usado essas palavras, mas nem por isso se tornou nazista. A arte é patrimônio nacional, de qualquer nação, que pode ser controlada por qualquer governo mais assanhadinho, tanto nazista, quanto comunista, ou fascista, ou integralista ou qualquer outro "ista" que imaginarmos. Até bolivarianista e peronista. 



Mas então, Alvim não é nazista? Não sei, só sei que tal declaração não faz de ninguém um nazista, mesmo que acompanhada de uma música que já foi tocada em propaganda de produto de limpeza. O que caracteriza o nazismo é a crença da raça superior - a deles - e o detrimento das raças "inferiores" - todos os demais. No sentido político, o nazismo é aquele regime que persegue preferencialmente judeus e mata-os, mas em essência, qualquer regime que prega a superioridade da sua etnia e o desejo de eliminar os "inferiores" já pode ser considerado um regime nazista. Ou isso, ou ninguém daria atenção ao nazismo.



O regime do Apartheid, na África do Sul, por exemplo, poderia ser considerado um regime nazista: um povo declarado superior que segrega o povo "inferior". Não exterminou parte da população negra - pois o extermínio nazista pode ter sido um projeto político do "Führer", não que faça parte do nazismo - mesmo assim, é um regime nazista. Um "nazismo moderado", por assim dizer, assim como temos o "comunismo moderado" ou um "islamismo moderado". Se a Klu Klux Klan tivesse tomado o poder nos EUA, certamente seria um regime nazista, só não sabemos se iria exterminar ou reescravizar a população negra, mas em essência, eles já são nazistas. Até o governo hutu de Ruanda em 1994 pode ser considerado um regime nazista: uma etnia que perseguiu e prendeu pessoas de outra etnia, e ainda matou 800 mil pessoas em apenas 3 meses, um ritmo superior ao dos nazistas. A grande diferença é que talvez não se tratava de "superioridade" em relação aos tutsis, mas de ressentimento ou vingança. Ressentimento: Hitler usou o ressentimento da população alemã em relação aos judeus, e assim começou tudo.



Em outra postagem, arrisquei palpitar sobre o porquê odiamos o nazismo. Não, não é porque respeitamos a vida - na verdade, muitos odeiam os judeus tal qual os nazistas. Muitas pessoas que são contra a pena de morte são favoráveis a fuzilamentos de "nazistas", por exemplo. O primeiro motivo é que não podemos ser nazistas, e se não podemos ser nazistas, somos alvos deles. Mas nós podemos ser comunistas, e Hitler ousou invadir a sagrada URSS, governada pelo divino Stalin, os únicos que nos aceitam como seus filhos.



Quantas pessoas repetiram essa frase "uma mentira repetida mil vezes se torna verdade"? É uma citação de Goebbels. Então sois nazistas, ou tem que ter a música de Wagner tocando no fundo? Aliás, de tão repetida essa frase e considerada verdadeira, não sei se era uma mentira que se tornou verdade.


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

...E a Carne Subiu

Essa é a primeira postagem que faço sobre Bolsonaro e seu governo, embora quis falar sobre isso tempos atrás. Acho que era medo d'eu ser boicotado. Mas não me calarei, mesmo a carne sendo fraca. E por falar na dita, o assunto do momento é a alta do preço da carne, ocasionado pela exportação para a China. Como estão fazendo uma salada de frutas com o assunto, tentarei aqui separar o joio do trigo.



Primeiro, houve um surto de grupe suína africana na China. Não entendo muito disso, mas sei que é algo que nada tem a ver com política, seja da China, seja do Brasil. Algo meio que aleatório, que poderia ter acontecido no governo do PT ou do Temer. Por causa disso, a produção de carne na China caiu pela metade.



Segundo, para suprir isso, a China está comprando carne do mundo todo, sobretudo do Brasil, que é o maior produtor.



Terceiro, não há um monopólio estatal da carne - algo como Carnebrás -, tampouco Bolsonaro obrigou ou "sugeriu" os frigoríficos a exportarem para a China. Essa foi uma decisão, até natural, do setor. Portanto, acusar Bolsonaro por isso é algo meio inglório.



Quarto ponto, que tem mais a ver com ciências econômicas, tal situação sugere que a exportação por si só não é o motor do progresso. A demanda aumentou, mas a oferta não, o que ocasionou no aumento do preço.



Quando o Egito ameaçou boicotar a carne brasileira, houve indignações contra o Bolsonaro. Agora que as exportações aumentaram e o preço subiu, culpam o Bolso pela mordida no nosso bolso. Meio complicado.




Dito tudo isso, descobre-se que Bolsonaro não tirou a carne do nosso prato para vender aos chineses por maldade, mas tudo foi fruto de uma ocasionalidade e leis do mercado, que poderia acontecer em qualquer governo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Homicídios de negros

Há décadas estava preparando esse texto, mas deixei de lado porque o assunto passou. Mas que nada: concentração de renda, aquecimento global, nazismo de esquerda ou direita e assassinatos de negros são assuntos eternos. Podem ter um intervalinho, mas sempre voltam. Coincidentemente, posto esse texto a poucos dias do dia da Consciência Negra.




Nossos intelequetoais não sabem analisar os próprios dados que apresentam, ou então tiram conclusões falsas para não causar “piti” no seu público. O caso mais conhecido é sobre os homicídios de negros no Brasil. Segundo dados tirados do Mapa da Violência, 70% das pessoas assassinadas são negras contra o restante de brancos, num país onde 53% da população é negra (e pardos), logo, 17% de todos os homicídios no país seria por racismo. Um número bastante elevado, considerando que existem várias causas de homicídio no país. Não vou contestar os números em si, mas a própria análise desses dados.



Vamos começar por um acerto: compararam a proporção de negros assassinados com a proporção de negros no país. Uma atitude óbvia, mas que até pouco tempo, isso não era feito. Agora, vamos ao resto:



1) A proporção de pessoas assassinadas muitas vezes não corresponde exatamente a proporção populacional. Em um mundo onde tudo funcionasse com precisão, o percentual de negros assassinados seria de 53%, embora, obviamente, é preferível que não haja assassinatos. Mas não é o caso. Sempre existirá uma diferença entre a proporção populacional e demais variáveis, algo como as famosas margens de erros das pesquisas eleitorais. Explico isso BEM AQUI



Sempre haverá uma diferença e devemos usar um percentual, o menor possível, digamos, de 5% para mais ou para menos. Assim, podemos “aceitar” um percentual de assassinatos de negros entre 48% a 58%. Mas o percentual real é de 70%, um percentual elevado, mesmo com as “margens de erro”.



2) A conclusão de que 70% das pessoas assassinadas são negras ocorre por racismo parte da premissa de que todos os assassinos são brancos. Não creio que 70% dos assassinos são negros, mas é quase impossível que sejam todos de uma única cor, sexo ou orientação sexual. A proporção de assassinos negros simplesmente é ignorada, até porque, mais de 90% dos assassinatos em geral não são esclarecidos, portanto, o assassino é desconhecido.



Essas são as falhas da análise de dados, agora, falarei da falha metodológica que originam essa conclusão. Se eu fosse fazer um trabalho sobre os assassinatos motivados por racismo, faria mais ou menos assim: descobriria, se possível, o número de negros assassinados por brancos. Alguns poderão fazer o mesmo e parar por aí, afirmando que são assassinatos motivados por racismo. Ainda não. Desses, temos que separar assassinatos por “acerto de contas”, ou guerra de quadrilhas, troca de tiros, latrocínios ou mesmo feminicídio e homofobia, pois não são atos racistas. O que sobrar, aí sim, podemos afirmar que é racismo.



O que expus aí não é uma justificativa ao racismo, até porque brancos não fazem plena ideia do que negros passam numa sociedade racista como a nossa. O que veem nas TVs ou revistas não é tudo. Mas devemos nos atentar aos verdadeiros problemas, não aos falsos, que desviam nossa atenção dos verdadeiros.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Olha eu respondendo o Olavão!!!

O sempre polêmico Olavo de Carvalho nunca esteve tão em alta. Desde que o atual presidente assumiu, ele tem se tornado uma espécie de Rasputin tropical, inclusive tendo ministros indicados sendo aceitos pelo governo. Se antes, os satélites estavam captando sinais de "vida" de Olavo, agora lupas são direcionadas nas suas redes sociais, a espera de alguma postagem polêmica.



Nessa semana, ele teria postado no Twitter uma suposta lacuna científica: de que ninguém contraprovou a argumentação dos terraplanistas sobre a retidão da superfície marítima e isso lhe rendeu a pecha de terraplanista. Oh, como não falei sobre essa "teoria" antes? Vou tentar corrigir um pouco desse lapso aqui. Mas bem, voltando ao Olavo terraplanista, essa dúvida deve mesmo encucar muita gente, inclusive aqueles convictos de que a Terra é ESFÉRICA, mas jamais ousariam expôr essa dúvida em público, como fez o Olavão. Que a Terra é redonda até os terraplanistas sabem, mas para eles, é redonda mas plana. 



Tentarei explicar aqui sobre esse aparente argumento terraplanista, de que essa retidão da superfície seria um indício de que a Terra é plana.



Muito bem, vamos do começo, antes da invenção da roda. Vejam essa interessante e complexa figura abaixo:





Essa figura chama-se quadrado. Vejam que ela tem quatro lados retos. Mas o que acontece se apararmos as pontas? Teremos uma figura semelhante a de baixo:





Se apararmos as pontas dessa figura - um octógono - teremos outra figura com mais e menores lados retos. Se apararmos novamente as pontas dessa nova figura, teremos figuras cada vez mais próximas de um círculo, até que finalmente teremos um círculo.






E então, o círculo não tem nenhuma reta? Sim, tem, mas são infinitesimais. Para provar isso, vejamos abaixo:






Essa parte da circunferência que toca a linha reta no Ponto A é a parte reta do círculo. Elementar, se tocou a reta, então também é uma reta. 



Paremos com essa viagem toda e voltemos ao Planeta Terra. A Terra também é uma circunferência, uma circunferência de aproximadamente 40 mil quilômetros, que também possui inúmeras e infinitesimais partes retas. Uma dessas partes retas da circunferência terrestre é essa superfície reta abaixo dos nossos pés e ao nosso redor, que devem ter uns quinze quilômetros de diâmetro e que é delimitado pela linha do horizonte. No caso da superfície marítima, o horizonte parece reto porque a superfície é homogênea, lisa, sem relevos. Infelizmente, não estou a beira do mar para constatar isso de perto, mas se alguém morar junto ao mar ou em alguma planície perfeita e ver se isso procede, agradecerei na minha próxima postagem.



Ao que parece, a dúvida do Olavo se refere apenas a superfície marítima porque na superfície continental isso não é observável devido a sua superfície rugosa, mas fica claro que o que vale para uma superfície rochosa, vale para uma superfície oceânica, e trechos retos não provam que a Terra é plana ou algo do tipo. Questão de geometria.


quarta-feira, 29 de maio de 2019

A meritocracia de Bettina

Estou eu meio que afastado da internet, desde que a tela do meu laptop trincou pela enésima vez em três meses, por isso, só acompanho algumas notícias no Yahoo, um dos únicos sites que consigo acessar no trabalho, ou quando minha mulher me põe a par das discussões nas redes sociais. Recentemente, o assunto da semana foi uma das propagandas da Empiricus sobre como aumentar sua renda, ficar rico, coisas e tals. Uma jovem teria multiplicado em mil vezes o seu pequeno capital em apenas três anos. Acho que é isso. Depois das várias suspeitas sobre tal façanha, houve pessoas, ou uma, que aproveitou a ocasião para falar sobre meritocracia, de novo e de novo. As bobagens de sempre, para manter a tradição, e em nome da tradição, contestarei mais essa bobagem.


Sempre que falam sobre essa tal meritocracia, há a confusão entre inexistência e ausência. No vídeo não foi diferente, pra nada variar. O primeiro grande problema foi associar a meritocracia à ascensão fictícia da jovem, tentando desmentir algo que ela não falou. Caso essa façanha do milhão fosse verdadeira, seria mais uma questão de sorte que de mérito, já que envolvia investimento em ações. A própria moça, a Bettina, sequer fala em mérito, em esforço, em determinação, coisa e tal, e  estava disposta a compartilhar sua experiência com as demais pessoas (desde, é claro, que pagassem uma taxinha irrisória). Associar isso a meritocracia requer um esforço mental tão grande que certamente daria grandes resultados se fosse aplicado em algo produtivo, tornando o sujeito um “merecedor”, ou lhe faltaria oportunidades para tanto?


O sujeito do vídeo fala que a meritocracia favoreceria uma elite, perpetuando as desigualdades sociais. Desculpe-me, mas isso já acontece, mesmo com a “ausência” de meritocracia. Desculpe-me novamente, mas é a ausência de meritocracia que perpetua as desigualdades sociais, pois pessoas talentosas e competentes, mesmo que sejam desfavorecidas pela vida – e elas existem - são deixadas de lado por causa da cor, raça, sexo, preferência sexual, pelo candidato que escolheu na última eleição, ou para dar espaço a alguém incompetente mas bem Quem Indicado. Tais situações são opostas à meritocracia, mas que cinicamente são chamadas de meritocracia.


Sobre a tão cantada em prosa e verso Deve Haver Igualdade de Oportunidades, que discuti em outra ocasião, certa vez vi um filme brasileiro que pretendia passar uma mensagem, mas para quem prestou atenção, apenas corroborou com o que escrevi. O filme Que Horas Que Ela Volta procurou mostrar a desigualdade e o preconceito da elite contra os mais pobres. Mas o que me chamou a atenção no filme, até porque deve ter sido algo não intencional, é que a filha da protagonista, pobre e esforçada, foi aprovada em um vestibular de medicina, enquanto o filho da patroa, mesmo com todas as oportunidades da vida em mãos, foi reprovado. Pela lógica “anti-meritocrática”, o garoto seria aprovado meio que automaticamente, pois tinha todos os recursos para tal, enquanto a moça tenderia a seguir o mesmo destino da mãe, por mais que se esforçasse. “Exceções”, diria alguém que não sabe a extensão dessas “exceções”, ainda que fossem, de fato, exceções, são melhores que nada, certo? E a Igualdade de Oportunidades pode vir com a meritocracia…



Outra coisa que sequer é discutida é o caráter social de uma profissão. Mesmo que a meritocracia favorecesse tão somente Quem Teve Oportunidades Na Vida, no fim das contas, o que nos interessa é a qualidade de seus serviços. Precisamos de bons médicos, bons advogados, bons dentistas e bons qualquer outra coisa, até porque até nossa sobrevivência depende disso, independentemente se tais profissionais ganharam tudo de mãos beijadas ou tiveram que ralar mais que o necessário. Sem um mínimo de meritocracia, Os Que Tiveram Oportunidade Na Vida continuarão ocupando bons cargos, mas não pela sua competência, o que seria desastroso para qualquer sociedade, e é o que ocorre no Brasil hoje, esse exemplo de país onde a meritocracia não tem vez.



A jovem Bettina e a Empirucus podem ser acusados de tudo, menos de espalhar os nobres valores da meritocracia. Brasileiro não acredita em meritocracia; brasileiro acredita na Mega-Sena e em concursos públicos, de preferência federal.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Uma guerra esquecida

Guerras são inesquecíveis. Todos sabem ou já ouviram falar das diversas guerras que o mundo já presenciou ou sofreu; mas vez ou outra surgem curiosas exceções. Quem já alcançou seus quarenta anos de idade, lembrar-se-á do que falarei em seguida. O que vou contar foi o que eu vi, o que me lembro, não pesquisei sobre isso, é um testemunho pessoal.



Agosto de 1990: o Iraque, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, invade o Kwait, outro dos maiores produtores de petróleo do mundo. Eis que a partir daí, um personagem já meio conhecido de uma guerra anterior é erigido tal qual foi Bin Laden em 2001: Saddam Hussein. Seu nome passou a significar ameaça não apenas à paz mundial, mas a toda a civilização, afinal, desde a criação da ONU, invadir países não é algo muito tolerável, principalmente quando um dos maiores produtores de petróleo do mundo invade outro grande produtor de petróleo do mundo. Algo precisava ser feito, e é aí que começa a tensão. Uma coalizão de países da ONU, inclusive com países do Oriente Médio, prometeu libertar o Kwait. O problema: uma guerra interminável naquela região prejudicaria o comércio mundial de petróleo, o que causaria...fome. Fome em todo o planeta. Esse foi o medo. Uma guerra não-nuclear, mas que destruiria a civilização.



Meses antes, assisti pela primeira vez o filme Mad Max II. O que me chamou a atenção foi o prelúdio do filme, explicando como o mundo chegou àquele ponto. A Guerra Fria havia chegado às grandes fontes de petróleo, destruindo as imensas refinarias e acabando com o abastecimento. Sem petróleo, começou uma convulsão social e o colapso da civilização. Mais ou menos isso que eu estava esperando dessa tal guerra.



A tensão em todo o planeta foi grande, a Rede Globo criou plantões especiais para esse evento, tão ou mais aterradores que os atuais plantões da emissora. Janeiro de 1991 (digo que foi um dos melhores anos da minha vida), a iminência de uma Guerra no Golfo (acho que não expliquei: esse Golfo é uma referência ao Golfo Pérsico, onde tudo ia acontecer) preocupava a todos e a mim, até porque eu vi no Mad Max II o que poderia acontecer. Curiosamente, a Globo exibia uma de suas campanhas para alguma coisa, no caso, uma campanha pela paz, com crianças cantando, como se quisesse fazer um apelo aos envolvidos e meio que tranquilizar seus telespectadores pelo que ia vir, e isso me deixava ainda mais preocupado.



14 de janeiro, umas 22 horas no horário de Brasília, começa a temida guerra. E agora? Algumas pessoas estocaram botijões de gás temendo um desabastecimento. Deveriam ter estocado comida também. Algumas "maravilhas" tecnológicas de guerra surgiram, deixando os alvos bem mais seletivos, com o menor número de mortes inocentes e destruição possível. Doce ilusão para quem acreditou que as guerras posteriores seriam assim. Os passos da guerra eram esses: primeiro, um ataque aéreo; caso não desse certo, haveria um ataque terrestre; caso não desse certo, um ataque noturno. Mísseis inteligentes, etapas planejadas, tudo muito cirúrgico, como deveria ser todas as guerras, já que evitá-las é impossível. Essa foi a chamada Guerra Cirúrgica, pois tudo deveria ser muito cirúrgico, caso contrário...adeus, civilização. A medida que a guerra passava, menos provável ficou o tão temido desabastecimento de produtos de petróleo, inclusive dos batons.



A estratégia do senhor Saddam durante a guerra foi atacar Israel para que esse reagisse. Caso isso acontecesse, os demais países muçulmanos que estavam ao lado da ONU se aliaram ao Iraque, o que complicariam muito a situação, podendo concretizar o grande temor dessa guerra. Devemos agradecer o governo de Israel da época por manter o sangue-frio. Tudo isso foi narrado pela CNN, onde pela primeira vez ouvi falar dessa emissora, pelo seu inesquecível correspondente - acho que já esquecido - Peter Arnett.



Dizem que quando perguntaram a Albert Einstein como seria a Terceira Guerra Mundial, ele disse que seria uma guerra nuclear, mas a Quarta Guerra Mundial seria com paus e pedras, insinuando o retorno da humanidade à pré-história. O que aconteceu não seria uma guerra nuclear, mas nosso destino seria o mesmo. Parece mentira, um pesadelo, mas foi real. Pergunte para seus pais.